A Filha do Sangue [Trilogia das Joias Negras] - Anne Bishop


Prepare-se pra se desprender da maioria dos padrões da fantasia que você conhece. O universo de Bishop tem uma densidade espantosamente sombria e amável ao mesmo tempo ("???????" calma, eu explico depois), e ninguém vai poder dizer que já viu coisa parecida. Nessa proximidade do Halloween, ou Dia do Saci (Brasil ♥), trago minhas impressões sobre um MA-RA-VILHOSO mundo bem pesado e até mesmo intragável para alguns.

Nas "orelhas" do livro já vemos comparações da obra de Anne com uma xícara de café forte: "escuro, e implacável com os estômagos mais delicados". Sim, é 100% verdade. Até mesmo os digníssimos leitores acostumados com a crueldade das histórias de Game of Thrones caem das cadeiras. E qual o motivo de tanto choque? Deixo aqui a sinopse primeiramente, assim já dá pra ter uma ideia da trama central.

"O Reino Distorcido se prepara para o cumprimento de uma antiga profecia: a chegada de uma nova Rainha, a Feiticeira que tem mais poder que o próprio Senhor do Inferno. Mas ela ainda é jovem, e por isso pode ser influenciada e corrompida. Quem a controlar terá domínio sobre o mundo. Três homens poderosos, inimigos viscerais - sabem disso. Saetan, Lucivar e Daemon logo percebem o poder que se esconde por trás dos olhos azuis daquela menina inocente. Assim começa um jogo cruel, de política e intriga, magia e traição, no qual as armas são o ódio e o amor. E cujo preço pode ser terrível e inimaginável."

O fato é: isso aí não cobre nem um terço da história, e olha que eu não tenho a mínima pretensão de tentar capturar a sua essência em poucas palavras. Numa sociedade matriarcal — para muitos o absurdo já começa aí — um povo milenar e muito complexo vive com uma moral e ética totalmente diferente da conduta que nos acostumamos. Os temas incesto, castração, relações abertas, assassinato, e pedofilia são abordados de forma escancarada. É nos dito que os Sangue já não se lembram mais do que é ser Sangue, e restou neles mais mal do que bem, e é possível perceber isso.

Servos das Trevas, homens e mulheres são detentores da Arte, como é chamada sua magia. O poder vem das Joias, pedras que cada um deles recebe bem jovens. Após uma cerimônia psíquica, é possível descer na hierarquia das Joias e conseguir uma até três níveis mais forte. Quanto mais escura e "baixa", mais poderosa a Joia.

Chamados de machos, os homens existem para servir suas senhoras. Mas essa relação costumava ser mais amigável, já que eles sempre possuíram esse desejo de servir internamente. Mas as feiticeiras estão cruéis, e grande parte delas agora apenas desperta ódio em seus machos. E aqueles que são muito poderosos, acabam sendo subjugados por um anel de obediência (dica: não é no dedo, tadinhos).

Mas, assim como as mulheres são a ruína dos machos, os machos também podem arruinar as feiticeiras. Na Noite da Virgem, as mais fracas são quebradas e descem em suas mentes até um lugar impossível de encontrá-las. Loucas e instáveis, nunca mais serão as mesmas. Tersa foi quebrada, e suas profecias podiam até estar meio vagas, mas a mais importante delas não tinha como estar mais certa. Para o regojizo de uns e o desespero de outros, Jaenelle estaria em breve caminhando estre os Sangue.

Entre os muitos que ansiavam por mudanças, estavam Daemon Sadi, Saetan e Lucivar SaDiablo. Mesmo unidos pelos laços de sangue, os três não se falam há bastante tempo. Servir e proteger a mulher que seria não só sua nova rainha, mas A Feiticeira, alguém com poderes inimagináveis, vai obrigá-los a cooperar. Ainda mais depois que descobrem que Jaenelle ainda é só uma menina de sete anos.

Hora de ressaltar uma das grandes sacadas de Anne Bishop: Jaenelle é o mito, a lenda, a idealização de todo esse poder sombrio e salvador. Mas mesmo portadora de toda essa expectativa, ela é ainda uma criança e tudo que acontecer em sua vida nessa fase vai influir nas decisões que tomará no futuro, na maneira de pensar... Se tem momentos de ingenuidade, em que é possível acreditar na meiguice de uma criança ordinária, seu lado sóbrio nos assusta e encanta com igual intensidade. E como administrar isso sem quebrar todo o mistério?

A narrativa em terceira pessoa nunca usa o ponto de vista de Jaenelle. Tudo o que sabemos dela é através dos outros protagonistas (ou melhor dizendo, dos protagonistas de verdade), Daemon, Saetan, Lucivar, e Surreal. Assim, não lemos sobre os pensamentos bobos de uma criança, que nos fariam duvidar da grande Feiticeira que há dentro dela, mas seus momentos doces e divertidos ainda nos lembram da sua meninice. Além do mais, com os Sangue, psíquico e físico nunca estão totalmente separados. Os cruéis jogos mentais e batalhas em dimensões dentro de alguém estão sempre dizendo o algo mais que está lá. Eu diria que o equilíbrio foi perfeito, não houve aquela propaganda enganosa de algo gigantesco que na verdade nem era tão relevante assim. Jaenelle é tudo que Jaenelle é, e por ser uma menina adorável (mesmo com densos poderes) nos faz torcer por sua segurança, e abrir sorrisos em várias de suas cenas.

Saetan, pai de Daemon e Lucivar, é o Senhor do Inferno. Ao encontrar Jaenelle, sente uma conexão com ela de imediato. Ela é a filha de sua alma, e tudo o que estiver ao seu alcance (ou mesmo não estiver) para que ela aprenda coisas boas e fique segura, ele fará. Tendo que dividir Jaenelle com a família biológica dela, que já a colocou em um hospício por pensar que fosse louca, Saetan fica bastante impaciente e preocupado. A pequena Feiticeira viaja entre os mundos (dos mortos e dos vivos) como se isso não fosse nada. E não há nenhuma maneira de saber por onde ela anda, com quem fala, ou mesmo o que estão fazendo com ela.

Lucivar, não aparece muito nesse primeiro volume. Mestiço de duas raças que se odeiam, suas enormes asas negras são a coisa que mais gosta de ter. Agora escravo, ele sobrevive sem muita perspectiva. Lucivar foi primeiro a encontrar Jaenelle, e sabendo que algo grande está para acontecer, resolve que precisa estar vivo quando sua nova rainha estiver pronta. Então, ele poderia ser livre de novo, voar pelos céus, e destruir tudo com Daemon. Os dois juntos com certeza se tornam um evento perigoso para todo o reino.

Daemon, o Sádico, é complexo demais. Talvez o melhor personagem de Anne. Escravo sexual, e o macho mais forte de todos (Daemon possui a Joia Negra, e não tem escrúpulos para usá-la), ele está sempre de Corte em Corte causando muitos problemas, como uma pequena vingança. Conhecido por destruir o psicológico das pobres estúpidas senhoras que o chamam para suas camas, Daemon o faz sem nenhum esforço. É difícil sentir alguma coisa depois de ser usado como um objeto tantas e tantas vezes, e todas essas feiticeiras não conseguem suportar a sua frieza. Isso e mais algumas mortes eventuais de pessoas que passam dos limites, acabam fazendo com que ele caia nas mãos de Dorothea, um nojo de pessoa (um nojo mesmo!!!!!!!!!!!). Já farto desse ciclo de sofrimento, ele sente que nasceu para Jaenelle. Pensar em vê-la, conhecê-la, protegê-la, e ser seu amante... É o que faz querer viver. Ele acredita que este é o verdadeiro propósito da sua existência. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que ela era tão nova?

Mas, para quem tem uma vida tão longa, alguns anos de espera não faziam diferença. Conhecer Jaenelle quando criança o fez ter uma amizade, uma conexão, um laço muito forte com ela, que ele talvez jamais pudesse ter se a tivesse encontrado já com idade para ser sua amante. Mesmo assim, era tão difícil ver a única pessoa por quem se apaixonaria num corpo de criança... Daemon aprende a amar também a Jaenelle menina, além da Jaenelle Feiticeira. E no final das contas descobriu que elas não são diferentes.

Surreal, é uma feiticeira prostituta, que costumava ser amiga de Daemon. Ela agora trabalha nas Casas da Lua Vermelha, e começa a desvendar um mistério que pode ser crucial para a segurança de Jaenelle. Ligada à Tersa, lamenta muito o que aconteceu com ela e espera que a profecia se realize. Mas será que eles vão conseguir impedir que sua Feiticeira seja corrompida, ou mesmo morta? A única lição que não querem que ela aprenda, é a do ódio. Só que com tanta coisa ruim por aí, vai ser meio difícil.

A edição está linda demais, uma obra de arte. As joias da capa brilhantes e em alto-relevo, o corte oval que me lembrou um porta-retrato... Lindo, mara. O único problema nessa beleza toda (e que 90% do pessoal que leu concordou), é que temos a impressão de que se trata de um material bem leve, que você pode dar pro seu filho de onze anos ler. Bem... não é, não! E antes que eu me esqueça, alguns erros de ortografia me deixaram de cabelo em pé. Poxa vida!

A Filha do Sangue foi um livro surpreendentemente maravilhoso para mim. Foi diferente, fascinante, de um jeito que eu nunca tinha visto. Me apaixonei por todos os personagens, por todas as cenas, por todas as viagens ao mais desprezível interior de alguém, por todos os territórios (apesar de ter ficado meio confusa com tanta informação). Anne me prendeu não só por fazer algo diferente, mas sim por fazer algo diferente e genuinamente interessante. 20/10!

Comentários

  1. Mandinha, você me convenceu a ler. Ok? Ok. Tenho o livro aqui e estava louca para doá-lo. Mudei de ideia.

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